segunda-feira, 16 de maio de 2016

Reforma da reforma e o futuro do Missal de Pio V


Reforma da reforma e o futuro do Missal de Pio V


O presente artigo trata-se da tradução de uma conferência feita pelo então teólogo Cardeal Joseph Ratzinger na Abadia de Notre-Dame de Fontgombault, no ano de 2001.

A "reforma da reforma"

O professor Spaemann tem razão: a "reforma da reforma" se refere naturalmente ao Missal reformado, não ao Missal anterior. O que se pode fazer, dado que finalmente nosso objetivo comum - me parece - é a reconciliação litúrgica e não o uniformismo? Não estou a favor do uniformismo, mas naturalmente temos que estar contra o caos, contra a fragmentação da liturgia, e, neste sentido, também a favor da unidade na observância do Missal de Paulo VI. Parece-me que este é um problema prioritário: como voltar a um rito comum reformado - se se quer -, mas não fragmentado ou deixado à arbitrariedade das comunidades locais, ou de alguns grupos de comissões e de peritos? A "reforma da reforma" é, portanto, uma questão que se refere ao Missal de Paulo VI, sempre com esta finalidade da reconciliação no interior da Igreja, porque, no momento, existe uma oposição dolorosa e estamos ainda longes da reconciliação, se bem que os dias que vivemos juntos aqui são um passo importante até esta reconciliação.

Para o Missal em vigor o primeiro ponto seria, na minha opinião, rechaçar a falsa criatividade que não é uma categoria da liturgia. Se recordou mais uma vez, o que o Concilio disse realmente sobre isto: somente a autoridade eclesiástica é quem decide, não é o direito de um sacerdote ou de algumas pessoas que muda a liturgia. Mas no novo Missal encontramos com bastante frequência fórmulas como: sacerdos dicit sic vel simili modo [...] ou melhor: Hic sacerdos potest dicere [...]. Esta fórmula do Missal oficializa o direito a criatividade; o sacerdote se sente quase obrigado a mudar um pouco as palavras, demonstrar que é criativo, que atualiza em sua comunidade esta liturgia; e com esta falsa liberdade que transforma a liturgia em catequese para esta comunidade. Se destrói a unidade litúrgica e a eclesialidade da liturgia. Parece-me, portanto, que seria muito importante para a reconciliação que o Missal fosse liberto desses espaços de criatividade que não respondem a realidade profunda, ao espírito da liturgia. Se com uma semelhante "reforma da reforma" se pudesse voltar a uma celebração fiel, eclesial, da liturgia isso seria, na minha opinião, já um passo importante, porque a eclesialidade da liturgia apareceria de novo claramente.

Fonte: O catequista
O segundo tema que falei são as traduções: o canonista Rose nos disse coisas importantes, a crise é quase ainda mais grave nos Estados Unidos [desconhecia a lastimável situação brasileira!!!], no mundo aglófono, com a mudança permanente da linguagem, com o problema do politicamente correto e da linguagem inclusiva. Há comunidades nos Estados Unidos que, em nome da linguagem inclusiva, já não se atrevem a dizer "Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo" porque isso é "machismo": Pai e Filho são dois homens. Então se diz: "Em nome do Criador, do Redentor e do Espírito Santo". É somente um exemplo para mostrar a gravidade deste problema e a insistência de alguns bispos (não da Conferência Episcopal como tal) em que se utilize o que eles chamam de linguagem real; o outro já não seria, segundo eles, linguagem real. A linguagem inclusiva faz desaparecer coisas essenciais, como por exemplo, nos salmos, toda a estrutura cristológica, porque as palavras masculinas estão proibidas. Consequentemente, o problema das traduções é um problema grave. Há um novo documento da Santa Sé sobre este problema, que constitui, me parece, um avanço muito real. Queria observar isto: deveriam se conservar alguns elementos de latim na liturgia normal, uma certa presença do latim, como vínculo de comunhão eclesial, me pareceria importante.

O terceiro problema é a celebração versus populum. Como escrevi nos meus livros, creio que a celebração para o oriente, até Cristo que vem, é uma tradição apostólica. No entanto sou contra a revolução permanente nas igrejas, se reestruturaram agora tantas igrejas que voltar a começar de novo neste momento não me parece, em absoluto, oportuno. Mas se sempre houvesse sobre os altares uma cruz, uma cruz bem à vista, como ponto de referência para todos, para o sacerdote e fieis, teríamos nosso oriente, já que finalmente o Crucificado é o oriente cristão, e, sem força, se poderia - me parece - fazer isso: dar como ponto de referência o Crucificado, a cruz, e assim uma nova orientação a liturgia. Creio que esta não é uma questão puramente externa: se a liturgia se realiza em um círculo fechado, se existe somente o diálogo sacerdote-povo, estamos diante de uma falsa clericalização e a faltar de um caminho comum até o Senhor, até o qual todos nos voltamos. Portanto, ter o Senhor como ponto de referência, para todos, sacerdote e fieis, me parece algo importante e totalmente viável e realizável.

O futuro do Missal de São Pio V

Conheço muito bem a sensibilidade dos fiéis que amam esta liturgia, é também um pouco minha própria sensibilidade. E neste sentido, compreendo o que nos disse o professor Spaemann ao afirmar: se não se conhece a finalidade de uma reforma, por pequena que seja, se se deve pensar que somente é um passo intermediário até uma perfeita revolução, isso sensibiliza aos fiéis. E neste sentido, se deve ser muito prudente com as eventuais mudanças. No entanto, disse também - o destaco - que seria fatal se a antiga liturgia se encontrasse como em um congelador, como em um parque nacional, um parque protegido para um determinado tipo de pessoas, às quais se deixariam estas relíquias do passado. Isto seria - como nos disse o professor De Mattei - uma espécie de inculturação: "Também existem conservadores, deixais a este grupo sua inculturação!". Com semelhante redução ao passado, não se conservaria este tesouro para a Igreja de hoje e de amanhã. Parece-me que, em todo caso, se deve evitar que esta liturgia fique petrificada em um congelador para um certo tipo de pessoas.

Esta deve ser também uma liturgia da Igreja e sob a autoridade da Igreja; e somente nesta eclesialidade, neste vínculo fundamental com a autoridade da Igreja, pode dar tudo o que pode dar. Naturalmente, se pode dizer: já não temos confiança na autoridade da Igreja depois de tudo o que vivemos nos últimos trinta anos. Ter confiança na autoridade da Igreja é um princípio católico fundamental. Sempre me impressionou muito uma reflexão de Harnack em uma discussão com Peterson, teólogo protestante então em via de converter-se; Harnack respondeu as questões deste jovem colega: é evidente que o princípio católico Escritura e Tradição é melhor, é o princípio junto e implica a necessidade de uma autoridade na Igreja, mas mesmo se o princípio como tal, o princípio católico, é justo, vivemos melhor sem a autoridade e sem as possíveis influências desta autoridade. Tinha a confiança de que a razão livre que estuda a Escritura chegaria à verdade e que isto era melhor que estar submetido a uma autoridade que pode ter falhas. Está correto, poderá falhar, mas a obediência a esta autoridade é, para nós, a garantia de estar na obediência ao Senhor. Se adverte, sem dúvida, muito drasticamente as pessoas que exercem autoridade, de que não a exerçam como um poder. A autoridade na Igreja é um exercício de obediência. Quando o Santo Padre decidiu que a Igreja não possui a faculdade de ordenar mulheres, era um exercício de obediência a grande Tradição da Igreja e ao Espírito Santo. Para mim, foi muito interessante ver os progressistas mais radicais e os mais ferozes adversários do Magistério que nos diziam: "Não! A Igreja pode fazer isto, deveis fazer uso de vossas faculdades!". Não, a Igreja não pode fazer tudo, o Papa não pode fazer tudo. Parece-me que diante de uma autoridade que, na situação atual, se faz ainda mais conscientemente um exercício de obediência, todos podem ter, devem ter esta confiança.
Para ser mais concreto, não faria nada neste âmbito por enquanto; está claro. Mas, no futuro, deveria se pensar – parece-me - em enriquecer o Missal de 1962, introduzindo santos novos; existem agora figuras importantes de santos: penso, por exemplo, em Maximiliano Kolbe, Edith Stein, os mártires da Espanha, os mártires da Ucrânia e tantos outros, mas também nessa Bakita do Sudão, que sai da escravidão e se faz livre na fé ao Senhor; há muitas figuras realmente belas que nos são necessárias. Portanto, abrir o calendário do antigo Missal aos novos santos, fazendo uma seleção bem meditada, me parece uma coisa oportuna que não destruiria nada do tecido da liturgia. Poderia se pensar também nos prefácios, que procedem igualmente do tesouro dos Padres da Igreja, por exemplo para o Advento e outros. Por que não incluir estes prefácios no antigo Missal?

Assim, se deveria entender, com uma grande sensibilidade, com uma grande compreensão até as preocupações e medos, em contato com os responsáveis, que este Missal é também um Missal da Igreja, e sob a autoridade da Igreja, que não é uma coisa protegida do passado, mas uma realidade viva na Igreja, muito respeitada em sua identidade e em sua grandeza histórica, mas também considerada como algo vivo, não como algo morto, uma relíquia do passado. Toda a liturgia da Igreja é sempre algo vivo, uma realidade que se encontra acima de nós, não submetida a nossas vontades e a nossas intenções arbitrárias. Estes são os comentários que queria fazer.

Para citar: RATZINGER, Joseph AloisiusObras completas: Teologia da liturgia. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012. 561 p. ISBN: 978-84-220-1609-0. Publicado no blog Regozija-te com a verdade, aos 16 de maio de 2016. Tradução de Gabriel Luan Paixão Mota.

O problema dos ritos romanos no rito romano


O problema dos ritos romanos no rito romano

O presente artigo trata-se da tradução de uma conferência feita pelo então teólogo Cardeal Joseph Ratzinger na Abadia de Notre-Dame de Fontgombault, no ano de 2001.


O fato desta coexistência é evidente, como mostrou muito bem, e de maneira muito convincente, o padre Folsom e também o professor Spaemann. O padre Folsom enunciou de forma clara duas consequências: não há razões litúrgicas contra esta pluralidade, mas existe o problema dos critérios canônicos e - como ele disse - políticos; diria melhor, pastorais. E aqui está realmente o problema para a autoridade da Igreja: quais são os critérios?

Santa Missa celebrada segundo o Missal de 1962 (hoje, forma extraordinária)
Pessoalmente, estive desde o começo a favor da liberdade de seguir usando o antigo Missal, por um motivo muito simples; estava começando já então a se falar de uma ruptura com a Igreja pré-conciliar, e da formação de modelos diferentes de Igrejas: uma Igreja pré-conciliar obsoleta e uma Igreja nova, conciliar. Atualmente o lema dos lefebristas consiste em afirmar que existem duas Igrejas, cuja grande diferença é visível para eles na existência de dois Missais, que estão em desacordo entre si. Parece-me essencial e fundamental reconhecer que os dois Missais são Missais da Igreja, e da Igreja que segue sendo a mesma. O prefácio do Missal de Paulo VI disse explicitamente que é um Missal da mesma Igreja, e se insere em sua continuidade. E para sublinhar que não existe ruptura essencial, que existem tanto a continuidade como a identidade da Igreja, me parece indispensável manter a possibilidade de celebrar segundo o antigo Missal como sinal de identidade permanente da Igreja. Esta é, para mim, a razão fundamental: o que até 1969 era a liturgia da Igreja, o mais sagrado para todos nós, não pode converter-se depois, com um positivismo incrível, no mais inaceitável. Se queremos ser críveis, inclusive com este lema da modernidade, é absolutamente necessário reconhecer que o que era fundamental antes de 69, segue sendo também depois: é uma mesma sacralidade, uma mesma liturgia.
Ao observar os desenvolvimentos da aplicação do novo Missal, encontrei em seguida uma segunda razão, a qual também o professor Spaemann também se referiu: o antigo Missal é o ponto de referência, um critério; um semáforo, disse. Isto parece-me muito importante para todos: este Missal da Igreja dá, por sua presença - sinal de identidade fundamental dos dois Missais, inclusive sendo expressões rituais diferentes -, um critério de referência e se converte em um refúgio para os fiéis que já não encontram em sua paróquia uma liturgia celebrada realmente segundo os textos autorizados da Igreja. Por um lado, não tendo dúvida de que um rito venerável, como o rito romano que esteve em vigor até 69, é um rito da Igreja, um bem da Igreja, um tesouro da Igreja, é necessário conservá-lo na Igreja.

Por outro lado, segue existindo um problema: como regulamentar o uso dos dois ritos? Parece-me claro que o Missal de Paulo VI é, por direito, o Missal em vigor e que seu uso é normal. Deve-se estudar a maneira de permitir e conservar para a Igreja o tesouro do antigo Missal. Tenho falado frequentemente no mesmo sentido que nosso amigo Spaemann: se existia o rito dos dominicanos, se existia - e, todavia, existe - o rito milanês, por que não também o rito - digamos - "de São Pio V"? Mas há um problema muito real: se a eclesialidade passa a ser uma questão de livre escolha, se na Igreja há igrejas rituais selecionadas segundo um critério subjetivo, isto cria um problema. A Igreja, está construída sobre os bispos segundo a sucessão dos apóstolos, na forma de Igrejas locais, portanto, com um critério objetivo. Estou nesta Igreja local e não busco meus amigos, eu encontro meus irmãos e minhas irmãs; e os irmãos e irmãs não se busca, os encontra. Esta situação de não arbitrariedade da Igreja na qual me encontro, que não é um Igreja de minha escolha, mas a Igreja que se apresenta-me, é um princípio muito importante. Parece-me que as cartas de Santo Inácio vão fortemente nesta linha de que este bispo é a Igreja; não é minha escolha, como se fosse com esse grupo de amigos ou com outro; estou na Igreja comum, com os pobres, com os ricos, com as pessoas simpáticas e antipáticas, com os inteligentes e os estúpidos; estou na Igreja que me precede. Abrir a possibilidade de eleger uma Igreja ao modo de se escolher uma carta poderia realmente ferir a estrutura da Igreja.
Portanto, deve-se buscar - parece-me - um critério que não seja subjetivo, para abrir a possibilidade do antigo Missal. Isto me parece muito simples se se trata de abadias: é uma coisa boa; corresponde também com a tradição segundo a qual havia ordens com um rito especial, por exemplo os dominicanos. Portanto, as abadias que garantem a presença deste rito ou também comunidades como os dominicanos de São Vicente Ferrer ou outras comunidades religiosas ou também fraternidades: este me parece um critério objetivo. Naturalmente, o problema se complica com as fraternidades, que não são ordens religiosas, mas comunidades de sacerdotes não diocesanos que, no entanto, celebram nas paróquias. Talvez, a paróquia pessoal seja uma solução, mas não deixa, tampouco, de dar problemas. Neste caso, a Santa Sé deve abrir a todos os fiéis esta possibilidade e conservar este tesouro, mas deve também conservar e respeitar a estrutura episcopal da Igreja.



A conferência continua falando sobre a reforma da reforma e o futuro do Missal de São Pio V
Clique para ler: Reforma da Reforma e o futuro do Missal de São Pio V


Se você não leu o início da conferência.
Parte 01: Revelação de Bento XVI sobre o Movimento Litúrgico

Não perca!
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Para citar: RATZINGER, Joseph AloisiusObras completas: Teologia da liturgia. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012. 561 p. ISBN: 978-84-220-1609-0. Publicado no blog Regozija-te com a verdade, aos 16 de maio de 2016. Tradução de Gabriel Luan Paixão Mota.

Revelação de Bento XVI sobre o Movimento Litúrgico


Revelação de Bento XVI sobre o Movimento Litúrgico

O presente artigo trata-se da tradução de uma conferência feita pelo então teólogo Cardeal Joseph Ratzinger na Abadia de Notre-Dame de Fontgombault, no ano de 2001.

Introdução

Reverendos Padres Abades e queridos irmãos,

Não me atrevo a propor conclusões; não tive tempo nem capacidade intelectual e física para preparar nada. Somente posso propor algumas observações. Mas, sobretudo, quero expressar meu profundo agradecimento a você, querido padre Abade, pelo espírito deste monastério que nos infundiu a paz da Igreja, a paz de nosso Senhor, e nos permite buscar juntos esse ecumenismo católico em que pode haver uma reconciliação dentro da Igreja quanto essas diferenças que são profundas e dolorosas.

O que irei dizer? Havia pensado em falar sobre quatro temas: em primeiro lugar, uma nota sobre a fisionomia intelectual e espiritual do Movimento Litúrgico tal como conheci; em seguida, uma palavra sobre as propostas do padre Folsom e do professor Spaemann sobre a pluriformidade dentro do rito romano, sobre os ritos romanos no rito romano; uma palavra sobre a "reforma da reforma"; e uma palavra também, nessa discussão com meu amigo Spaemann, sobre o futuro do Missal do ano de 1962.


A fisionomia espiritual e histórica do Movimento Litúrgico


Ontem me referi às origens da disciplina litúrgica acadêmica (a ciência litúrgica) dizendo que, por um lado, vinha de um trabalho histórico e, por outro, de um trabalho pastoral; isto se referia somente à disciplina acadêmica da liturgia, não ao Movimento Litúrgico. O Movimento Litúrgico nasceu na Alemanha a partir de uma diversidade de origens sobre o que padre Koster nos falou muito bem; interessava-me sublinhar que, ao meu ver, os grandes monastérios beneditinos - especialmente Beuron - foram o verdadeiro berço do autêntico Movimento Litúrgico (a abadia de Beuron, afiliada a Solesmes, porque os irmãos Wolter haviam fundado esta renovação beneditina em primeiro lugar em Beuron, e logo em Maria Laach, filiada a Beuron, e nas demais abadias). É interessante ler nas Memórias de Guardini que ele mesmo descobriu a liturgia participando nas horas canônicas de Beuron, participando na vida litúrgica vivida no espírito de Solesmes, ou seja, no espírito dos Padres, e como isto foi para ele o descobrimento de um mundo novo, o da liturgia como tal; parece-me que isto dá um pouco a chave para entender o que os Padres do Movimento pensaram na Alemanha (porém o padre Anselm Schott tinha um pensamento diferente, como também o padre Odo Casel, etc.). Este foi realmente o descobrimento da liturgia como um mundo simbólico cheio de realidade, cheio de sentido. No contexto da teologia neoescolástica bastante seca, por um lado, e do racionalismo e do modernismo, por outro - Guardini estudou em Tubinga, quando o modernismo era muito virulento ali -, este movimento deu uma nova visão do ser cristão partindo da liturgia.

Para uma certa teologia manualística, o que interessava nos sacramentos e também na eucaristia, era principalmente a validade, e, por conseguinte o momento da consagração. Havia se reduzido a teologia eucarística a um problema ontológico e jurídico, considerando todo o resto como cerimônias bonitas, interessantes, interpretáveis ou não em um sentido alegórico, mas não como realidade na qual se realiza a eucaristia. Consequentemente, teve que redescobrir que a liturgia não é somente um conjunto de cerimônias destinadas a dar um determinado comprimento e solenidade à consagração, mas que é o mundo do sacramento como tal. Esta era uma nova visão que, neste sentido, superava também uma teologia estreita e propunha uma visão mais profunda não somente da teologia, mas de toda a vida cristã. Pode se constatar a magnitude do Movimento Litúrgico somente no contexto histórico de uma interpretação muito insuficiente da liturgia. Por exemplo, desde o tempo de Leão XIII, se recitava o Rosário na Missa durante o mês de outubro, e era ainda o costume quando era jovem. A Missa era, pois, na verdade, como escrevi no prefácio de meu livro, um afresco coberto. Deste modo, redescobrir que a liturgia em si mesma está viva e é uma realidade viva da Igreja como tal, era um enriquecimento muito importante para a Igreja. Portanto, foi superado realmente os mal-entendidos, ideias e visões insuficientes da liturgia e da teologia. Inclusive creio que a explosão da reforma do século XVI foi possível também porque já não havia uma verdadeira compreensão da liturgia. Para Lutero, da Missa somente ficava a consagração e a distribuição da santa Comunhão.

Mas neste progresso real que o Movimento Litúrgico produziu - orientado até o Vaticano II, até a Sacrosanctum Concilium -, também havia um perigo: o desprezo da Idade Média como tal, da teologia escolástica como tal. A partir desse momento começou já uma divisão de caminhos: Dom Casel se mostrou muito exclusivista a favor da teologia patrística, tal como ele a via, e do platonismo litúrgico, tal e como ele o pensava. Estas ideias unilaterais perigosas foram posteriormente popularizadas como slogans muito tristes e perigosos; assim se dizia então, e lembro bem: "O pão consagrado não é para ser olhado com os olhos, mas para ser comido". Era um lema contra a adoração eucarística; se pensava que toda a realidade, todo o desenvolvimento realizado na Idade Média era errôneo. Consequentemente, houve um rigorismo e um arqueologismo litúrgicos que, ao final, se converteram em um grande perigo. Já não se podia entender que, inclusive as novidades da Idade Média - a adoração eucarística e logo a piedade popular, toda ela - eram realmente desenvolvimentos legítimos. Sobretudo, a sínteses entre as diferentes correntes já não era então possível: Guardini se distanciou de Maria Laach porque ele defendia o Rosário, a Via Crucis, a adoração eucarística, enquanto que os demais tinham uma posição estrita que já não admitia estes desenvolvimentos posteriores.


Portanto, esta questão - discutida já ontem - segue aberta: qual é a síntese possível e a visão profunda comum entre a teologia medieval e os Padres? Creio que Santo Tomás de Aquino é tanto um teólogo que abre a porta a uma nova visão da teologia, com a integração do aristotelismo, como um teólogo perfeitamente patrístico: partindo dele, se deveria ter a possibilidade de encontrar esta síntese. Guardini escreveu, no início dos anos 20, um diálogo muito interessante entre um exegeta, professor de universidade, racionalista, mas ortodoxo - como existiam nas universidades alemãs nesta época -, um liturgista rigoroso e um diretor de Caritas representante da piedade popular especialmente do Sagrado Coração; buscava neste tria-logo uma síntese, e isto há ainda de se fazer.

Parece-me que já nos anos 50 e, sobretudo, depois do Concílio, os perigos latentes e também patentes do Movimento Litúrgico se converteram em uma grande tentação, um grande perigo para a Igreja. Havia depois do Concílio uma nova situação porque os liturgistas haviam passado, de fato, a ser a autoridade; se reconhecia cada vez menos a autoridade da Igreja; agora era o perito quem detinha a autoridade. Esta entrega de autoridade aos peritos transformou tudo, e estes peritos, por sua parte, foram vítimas de uma exegese profundamente condicionada pelos juízos do protestantismo, a saber, que o Novo Testamento estava contra o sagrado, em oposição ao culto e sacerdócio e, portanto, em contraposição com a grande tradição, especialmente com a do Concílio de Trento. Se defendia a ideia de que o Novo Testamento estava em oposição ao culto porque se separa do Antigo Testamento, do templo. Agora o culto seria a realidade vivida, sofrida por Cristo crucificado fora dos muros da cidade. Isto quer dizer que agora é no profano onde se deveria ver o verdadeiro culto e que a ruptura com o sacerdócio levítico seria também a ruptura com o sacerdócio como tal: o presbiterado não seria o sacerdócio; o sacerdócio seria algo do Antigo Testamento ou pagão, não uma coisa do cristianismo. Esta interpretação do Novo Testamento em uma perspectiva - uma hermenêutica - fundamentalmente protestante e secularizante se fez cada vez mais forte com o tempo.

Por último, parece-me que a mudança da Igreja universal à Igreja local, e da Igreja local à comunidade local - como nos disse o professor De Mattei - foi e é, neste momento, um dos maiores problemas. Diz-se agora que a liturgia reflete a experiência religiosa da comunidade e que a comunidade é o único sujeito verdadeiro; isto nos conduz, de fato, não somente até uma fragmentação total da liturgia, mas até uma destruição da liturgia como tal, já que se a liturgia é somente o reflexo das experiências religiosas da comunidade, já não comporta a presença do mistério. É, pois, o ponto sobre o qual se deve firmemente resistir; há que redescobrir a Igreja - o corpo de Cristo - como o verdadeiro sujeito da liturgia. Assim pois, é preciso dar-se conta de que com uma exegese secularizada e uma hermenêutica profundamente protestante e secularizada, não se podem encontrar no Novo Testamento os fundamentos da nossa fé; e que com a fragmentação da liturgia considerada como o ato particular das comunidades locais, se perde a Igreja, e com a Igreja a fé e o mistério. Deve-se voltar, no entanto, a uma exegese arraigada na realidade viva da Igreja, da Igreja de todos os tempos, também a medieval. Deve-se reencontrar também, consequentemente, a realidade cultural e o sacerdócio no Novo Testamento, e recobrar o que é essencial para a liturgia; neste sentido, queria dizer que, com os limites que sem dúvida se podem encontrar nos textos de Trento, Trento segue constituindo a norma, relido com nosso conhecimento mais rico e mais profundo dos Padres e do Novo Testamento, lido com os Padres e com a Igreja de todos os tempos.

A conferência continua falando sobre o problema dos ritos romanos dentro do rito romano.

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Para citar: RATZINGER, Joseph Aloisius. Obras completas: Teologia da liturgia. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012. 561 p. ISBN: 978-84-220-1609-0. Publicado no blog Regozija-te com a verdade, aos 16 de maio de 2016. Tradução de Gabriel Luan Paixão Mota.

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