O CATÓLICO É OBRIGADO A ACEITAR AS REVELAÇÕES
DE SANTA FAUSTINA E SUA FESTA LITÚRGICA?
Por Gabriel Luan
P. Mota
A festa da Divina
Misericórdia, instituída pelo Papa S. João Paulo II para o segundo domingo da
páscoa, fruto de uma revelação particular da vidente Faustina Kowalska,
canonizada no mesmo no ano de 2000, pode ou deve ser aceita pelo católico?
Essa pergunta para
muitos pode parecer estranha, mas algumas pessoas fazem esse questionamento por
conta de dois aspectos: (1) a Igreja em 1959 proibiu os escritos da religiosa
e, além disso, (2) resta dúvida sobre que assentimento deve ser dado a uma revelação
particular.
A
PROIBIÇÃO E A REMOÇÃO DA PROIBIÇÃO
Os escritos foram
proibidos sob o pontificado do Papa São João XXIII. O decreto da Santa Sé diz o
seguinte:
Faz-se notar que a Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício, tendo examinado as supostas visões e revelações da Irmã Faustina Kowalska, do Instituto Nossa Senhora da Piedade, falecida em 1938, na Cracóvia, resolveu da seguinte forma: 1 – dever-se proibir a difusão das imagens e dos escritos que apresentam a devoção da Divina Misericórdia “nas formas propostas pela mesma Irmã Faustina”; 2 – ser delegada à prudência dos Bispos o dever de remover as imagens acima referidas, que eventualmente tivessem já sido expostas ao culto.
Contudo, em 1978 a
mesma Santa Sé, sob o pontificado do beato Papa Paulo VI, removeu a proibição com a seguinte notificação.
De diversos lugares, especialmente da Polônia, inclusive de fontes autorizadas, têm-nos perguntado se as proibições contidas na “Notificação” da S. Congregação do S. Ofício, publicada em AAS, no ano 1959, 271, referentes à devoção à Divina Misericórdia na forma proposta por Ir. Faustina Kowalska, estão ainda em vigor. Esta S. Congregação, tendo em vista os muitos documentos originais, desconhecidos em 1959; considerando que as circunstâncias variaram profundamente e contando com o parecer de muitos Ordinários poloneses, declara que as proibições contidas na citada “Notificação” não obrigam doravante.
Questiona-se
então se é possível que um Papa anule o decreto de outro Papa. Por acaso, não
são as leis imutáveis? A Igreja não mantém inalterável sua fé?
Para responder
esse questionamento é fundamental compreender que há três tipos de leis, a
saber: a lei eclesiástica, a lei natural e a lei divina. O poder soberano do
Papa está acima da lei eclesiástica, podendo ele alterar as suas disposições,
segundo os juízos da Igreja, estando esse poder limitado tão somente à
imutabilidade das leis divina e natural, além da própria constituição da
Igreja, conforme explica a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos (notitiae 11 de junho de 1999).
Explico melhor. As leis meramente de direito
eclesiástico podem ser alteradas ou mesmo abolidas pela Suprema autoridade da
Igreja, o Romano Pontífice. É em razão disso que o Papa pode alterar as leis
previstas no Código de Direito Canônico, como por exemplo, suprimir a
obrigatoriedade do jejum e da abstinência na sexta-feira da Paixão do Senhor, ou
as leis previstas em qualquer outro decreto cujo teor seja enquadrado
dentro da lei eclesiástica, como, por exemplo, o recente decreto que institui na
primeira segunda-feira depois de Pentecostes a festa mariana sob o título de
Maria, Mãe da Igreja.
O que a Igreja,
isto é, o Papa, não tem poder para mudar são as matérias vinculadas às duas
outras leis. Por exemplo, ele não teria autoridade para decretar que o casamento poderá doravante
ser celebrado entre duas pessoas de mesmo sexo, porque isso seria
contrário à lei natural e à lei divina (cf. Mt 19, 8s; Humanae vitae, n. 4 e 11),
nem que quem esteja em pecado mortal, como quem mantêm relações sexuais fora do matrimônio validamente celebrado e consumado, possa comungar, porque isso é contrário
à lei divina (cf. 1Cor 11, 29; Familiaris
Consortio, n. 20, 33, 79-84).
Em resumo, os
decretos da Santa Sé em matéria que esteja abaixo do poder papal (lei
eclesiástica) podem perder sua validade, se assim julgar o Papa através de
outro decreto.
Entre os decretos
meramente eclesiástico estão aqueles que, dentro de um processo canônico, julga
escritos, profecias e revelações de toda espécie. Esses decretos são, no mais
das vezes, de 'juízo prudencial' ou, em outras palavras 'circunstancial'. Assim,
quando a Igreja decreta que alguma revelação não pode ser propagada é porque,
diante dos documentos que até então chegaram ao conhecimento da Santa Sé, não
se pode afirmar que ela esteja de acordo com a fé católica.
Isso ocorre
porque a Igreja, como mãe e mestra que é, procurar evitar que os fies sejam
enganados por pseudoprofetas, com suas falsa revelações e perniciosos escritos.
Deste modo, durante esse processo de averiguação de escritos e revelações não é
incomum que a Igreja prudencialmente proíba (em caráter circunstancial) algum
escrito ou revelação de ser proposta, promovida ou divulgada.
Nesse sentido, foi
Padre Pio de Pietrelcina objeto de severos julgamentos por causa dos seus
estigmas e demais dons místicos (bilocação, levitação, milagres, etc.),
passando por mais de 70 visitas apostólicas da Santa Sé, cinco condenações e
dezenas de ações disciplinares durante os pontificados dos Papas Pio XI, Pio
XII e João XXIII. Contudo, após décadas, a Igreja viu que os documentos
apresentados naquela ocasião (circunstância) contra o frade capuchinho eram
falsos e, por isso, o beato Papa Paulo VI removeu todas as condenações que
sobre o frade estavam impostas. E assim em 1982 a Igreja declarou que nada
consta (nihil obstat) nos
ensinamentos e revelações dele que sejam contrários à fé católica, em 1999 o
beatifica e no ano de 2002 sob o reinado do Papa São João Paulo II o eleva às
honras dos santos, canonizando-o como São Pio de Pietrelcina.
Situação
semelhante ocorreu com os escritos de Santa Teresa d'Ávila, nos quais ela
relatava suas experiências místicas, que foram fonte de pesada averiguação e
análise por mais de seis anos, e também com as revelações de Nossa Senhora a um
casal de crianças videntes, Maximino Giraud e Mélanie Calvat, em aparição na
montanha de La Salette, localizada na França.
Portanto, vê-se
claramente que o Papa beato Paulo VI tem pleno poder para cancelar o decreto de
seu predecessor, porque tratava-se de lei meramente eclesiástica. O próprio documento
que permite a promoção dos escritos e das revelações de Santa Faustina
esclarece que depois de tomar posse de "muitos documentos originais,
desconhecidos em 1959", época do primeiro juízo, declara que o decreto
anterior não tem mais validade, confirmando o que acima ficou dito.
Decreto cancelado, devoção permitida, o Papa São João Paulo legal e sabiamente institui a festa da Divina Misericórdia (inclusive com possibilidade de lucrar indulgência plenária) para o domingo da oitava de Páscoa, porque é neste dia que a liturgia nos recorda os benefícios de Deus, em especial os sacramentos do Batismo (daí esse dia também ser chamado de dominica in albis – domingo em vestes brancas) e da Penitência, que jorraram, juntamente com os demais sacramentos, do lado aberto de Jesus (que na cruz teve seu peito transpassado e na imagem de Jesus misericordioso se traduz o mesmo significado).
Decreto cancelado, devoção permitida, o Papa São João Paulo legal e sabiamente institui a festa da Divina Misericórdia (inclusive com possibilidade de lucrar indulgência plenária) para o domingo da oitava de Páscoa, porque é neste dia que a liturgia nos recorda os benefícios de Deus, em especial os sacramentos do Batismo (daí esse dia também ser chamado de dominica in albis – domingo em vestes brancas) e da Penitência, que jorraram, juntamente com os demais sacramentos, do lado aberto de Jesus (que na cruz teve seu peito transpassado e na imagem de Jesus misericordioso se traduz o mesmo significado).
ASSENTIMENTO
A UMA REVELAÇÃO PARTICULAR
Tendo explicado
que a Igreja não vê, na devoção, nada que esteja contrário à fé católica e,
mais, que antes a promove com uma festa inscrita no Calendário Litúrgico, resta
explicar se o católico está obrigado a crer nas revelações de Santa Faustina ou concordar
com seus escritos.
Antes de tudo
cabe esclarecer que não faço nenhuma consideração de mérito dos escritos da
santa ou de suas experiências místicas, isto é, se as experiências são verdadeiras
e se seus escritos estão corretos (vale lembrar que a Santa Sé apenas diz se
eles não contradizem a fé católica, mas não afirma que a revelação seja
verdadeira ou que os escritos sejam dogmas, doutrinas da Igreja). O que se
pretende aqui é algo diverso: explicar se há obrigatoriedade em crer nas
revelações ou aderir aos escritos.
Pois bem. É
necessário saber que existem duas espécies de revelações: a pública e a
particular ou privada.
A Revelação
Pública consiste naquela Palavra que Deus deu à humanidade através das Sagradas
Escrituras, uma das modalidades de transmissão da Revelação Divina, juntamente
com a Sagrada Tradição e o Sagrado Magistério. Essa Revelação Pública já cessou
com a morte do último apóstolo, isto é com a morte de São João, e, explica-nos
o Catecismo da Igreja Católica, "não haverá nenhuma nova Revelação Pública
antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo" (cf. n. 66).
As revelações
privadas são aquelas visões e profecias que Deus concede aos seus após a
conclusão do Novo Testamento, com o fim de recordar alguma verdade de fé que
está caindo no esquecimento (recordemo-nos, sinteticamente, da mensagem de
Fátima: "penitência, penitência!"). Essas revelações, mesmo que
tenham sido reconhecidas pela Igreja, "não pertencem, contudo, ao depósito
da fé", nem têm como função "melhorar ou completar a Revelação definitiva
de Cristo" (cf. n. 67).
Transcrevo a
explicação dada pela Congregação para a Doutrina da Fé, por ocasião da
publicação da mensagem de Nossa Senhora em Fátima, Portugal.
A doutrina da Igreja distingue « revelação pública » e « revelações privadas »; entre as duas realidades existe uma diferença essencial, e não apenas de grau. A noção « revelação pública » designa a ação reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo Testamento. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. (...) Por outras palavras, em Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e, portanto, a revelação ficou concluída com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. (...) Neste contexto, torna-se agora possível compreender corretamente o conceito de « revelação privada », que se aplica a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima.
A Revelação
Pública exige a nossa fé, exige que a aceitemos com fé divina (católica),
porque é o próprio Deus que nos fala; é a sua Palavra. O próprio Deus se
revelou pelo seu Filho, daí a certeza sobre a qual se assenta a fé divina,
porquanto se creio em Deus, igualmente em sua Palavra creio. Por outro lado, a
revelação privada não nos exige fé divina. A estas mensagens podemos tão
somente crer com fé humana. Posso acreditar na mensagem na medida em que ela é
credível, isto é, o assentimento se dá porque a pessoa que a revelou é digna de
crédito.
O Papa Bento XIV
explica que a esse tipo de revelação, isto é, às revelações privadas, "não
é devida uma adesão de fé católica; nem isso é possível. Estas revelações requerem,
antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las
apresentam como prováveis e religiosamente credíveis." E diz o Papa São Pio
X, falando sobre as aparições de Nossa Senhora em Lurdes e em La Salette, que
quando a Igreja aprova uma revelação não aprova as aparições ou revelações em
si mesmas (no sentido de responder se houve revelação ou não, se os relatos estão
certos, se tudo foi de fato revelação ou tem alguma coisa que já estava no
consciente do vidente, etc.), porque em si mesmas elas não foram “nem aprovadas
nem condenadas pela Sé Apostólica, mas somente permitidas como piamente críveis
com fé só humana”.
Portanto, o fiel
católico pode – embora, em consciência não está obrigado – crer com fé humana
em revelações particulares, o que se inclui as mensagens de Nossa Senhora em
Fátima, Lurdes, La Salette, Aparecida, etc. e de Nosso Senhor Jesus Cristo à
beata Ana Catarina Emmerich ou Santa Faustina Kowalska, esteja essa devoção
inscrita no Calendário litúrgico ou não.
Uma observação importante diz
respeito aos motivos pelos quais o fiel não recebe a revelação particular como
sendo verdadeira. Se o motivo da não recepção da revelação particular é reto e
justo, não há pecado. Por outro lado, se se rejeita determinada revelação particular
por desprezo do Magistério atual, como se fosse possível conceber o Magistério
em função do tempo, um pré-conciliar e um pós-conciliar, ou de algum Papa,
então se incorre no pecado de desprezo (cf. Pv 14, 21). A gravidade desse
pecado depende relativamente da grandiosidade de quem manda: o desprezo de Deus
constitui o maior dos pecados, por isso, quem rejeita a Revelação Divina comete
blasfémia por injuriar a Deus que é Verdade; quem despreza a Igreja, cuja
autoridade somente está abaixo de Deus, também incorre em pecado grave (cf.
Suma IIa IIae, q.13; q.105). É possível ainda que haja pecados especiais conexos,
como por exemplo, há quem (já vi) faça gracejos e toda espécie de piadinhas e,
desse modo, é possível que se incorra em pecado de derrisão e zombaria, ou
irreverência, caindo em sacrilégio, etc.
A festa da Divina
Misericórdia, no entanto, deve ser aceita e celebrada por todos,
independentemente se se aceita as revelações privadas da santa, da mesma forma que
se deve aceitar e celebrar por todos as festas de Nossa Senhora de Fátima ou Lurdes,
porque a legislação obriga a todos os católicos de rito latino, isto é, que
celebram segundo o Missal Romano promulgado pelo beato Paulo VI, segundo a
edição típica de 2002.
Por fim, uma
última pergunta: não ficaria estranho essa resolução em que se afirma que não
se está obrigado a crer nas revelações e ao mesmo tempo se esteja obrigado a
celebrar as memórias litúrgicas? Não, porque quando se venera Nossa Senhora sob
o título de Fátima ou de Lurdes não se está a fazer outra coisa senão que
venerar a mesmíssima Virgem Maria, Mãe de Nosso Senhor. Assim também quando se
venera piamente a Divina Misericórdia não se está a fazer outra coisa senão
venerar um dos atributos de Deus, cuja eterna é a sua misericórdia (cf. Sl
136).
***
Ó
Jesus, o abismo da Vossa misericórdia derramou-se na minha alma, que é apenas o
abismo da miséria. Agradeço-Vos, Jesus,
pelas graças e pelos pedacinhos da Cruz que me dais a
cada momento da vida.
SANTA FAUSTINA
KOWALSKA
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Para citar: Gabriel Luan P. Mota. O católico é obrigado a aceitar as
revelações de Santa Faustina e sua festa litúrgica?. Publicado no blog Regozija-te
com a verdade, aos 8 de abril de 2018, festa da Divina Misericórdia.
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REFERÊNCIAS
Catecismo da Igreja Católica. Tradução da edição típica para português/BR.
Congregação para a Doutrina da Fé. Mensagem de Fátima.
Papa Paulo VI. Carta Encíclica Humanae Vitae.
Papa João Paulo II. Exortação Apostólica Familiaris Consortio.
Congregação para a Doutrina da Fé. Mensagem de Fátima.
Papa Paulo VI. Carta Encíclica Humanae Vitae.
Papa João Paulo II. Exortação Apostólica Familiaris Consortio.
Decreto do Domingo e Festa da Divina Misericórdia.
Padre Paulo Ricardo. Indulgência Plenária na Festa da Divina Misericórdia.
Padre Paulo Ricardo. Indulgência Plenária na Festa da Divina Misericórdia.
Varderlei de Lima. Um oportuno alertasobre ‘aparições’ e revelações particulares. Introdução de Dom Fernando Arêas
Rifan.
Padre Marcelo Tenorio. Uma Devoção Condenada pelo Papa Pio XII.
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