Revelação de Bento XVI sobre o Movimento Litúrgico
O presente
artigo trata-se da tradução de uma conferência feita pelo então teólogo Cardeal Joseph Ratzinger na Abadia de Notre-Dame de Fontgombault, no ano de 2001.
Introdução
Reverendos Padres
Abades e queridos irmãos,
Não me atrevo a propor
conclusões; não tive tempo nem capacidade intelectual e física para preparar
nada. Somente posso propor algumas observações. Mas, sobretudo, quero expressar
meu profundo agradecimento a você, querido padre Abade, pelo espírito deste
monastério que nos infundiu a paz da Igreja, a paz de nosso Senhor, e nos
permite buscar juntos esse ecumenismo católico em que pode haver uma
reconciliação dentro da Igreja quanto essas diferenças que são profundas e
dolorosas.
O que irei dizer? Havia
pensado em falar sobre quatro temas: em primeiro lugar, uma nota sobre a
fisionomia intelectual e espiritual do Movimento Litúrgico tal como conheci; em
seguida, uma palavra sobre as propostas do padre Folsom e do professor Spaemann
sobre a pluriformidade dentro do rito romano, sobre os ritos romanos no rito
romano; uma palavra sobre a "reforma da reforma"; e uma palavra
também, nessa discussão com meu amigo Spaemann, sobre o futuro do Missal do ano
de 1962.
A fisionomia espiritual e histórica do Movimento Litúrgico
Ontem me referi às
origens da disciplina litúrgica acadêmica (a ciência litúrgica) dizendo que,
por um lado, vinha de um trabalho histórico e, por outro, de um trabalho
pastoral; isto se referia somente à disciplina acadêmica da liturgia, não ao
Movimento Litúrgico. O Movimento Litúrgico nasceu na Alemanha a partir de uma
diversidade de origens sobre o que padre Koster nos falou muito bem;
interessava-me sublinhar que, ao meu ver, os grandes monastérios beneditinos -
especialmente Beuron - foram o verdadeiro berço do autêntico Movimento
Litúrgico (a abadia de Beuron, afiliada a Solesmes, porque os irmãos Wolter
haviam fundado esta renovação beneditina em primeiro lugar em Beuron, e logo em
Maria Laach, filiada a Beuron, e nas demais abadias). É interessante ler nas
Memórias de Guardini que ele mesmo descobriu a liturgia participando nas horas
canônicas de Beuron, participando na vida litúrgica vivida no espírito de Solesmes,
ou seja, no espírito dos Padres, e como isto foi para ele o descobrimento de um
mundo novo, o da liturgia como tal; parece-me que isto dá um pouco a chave para
entender o que os Padres do Movimento pensaram na Alemanha (porém o padre
Anselm Schott tinha um pensamento diferente, como também o padre Odo Casel, etc.).
Este foi realmente o descobrimento da liturgia como um mundo simbólico cheio de
realidade, cheio de sentido. No contexto da teologia neoescolástica bastante
seca, por um lado, e do racionalismo e do modernismo, por outro - Guardini
estudou em Tubinga, quando o modernismo era muito virulento ali -, este
movimento deu uma nova visão do ser cristão partindo da liturgia.
Para uma certa teologia
manualística, o que interessava nos sacramentos e também na eucaristia, era
principalmente a validade, e, por conseguinte o momento da consagração. Havia
se reduzido a teologia eucarística a um problema ontológico e jurídico,
considerando todo o resto como cerimônias bonitas, interessantes, interpretáveis
ou não em um sentido alegórico, mas não como realidade na qual se realiza a
eucaristia. Consequentemente, teve que redescobrir que a liturgia não é somente
um conjunto de cerimônias destinadas a dar um determinado comprimento e
solenidade à consagração, mas que é o mundo do sacramento como tal. Esta era uma
nova visão que, neste sentido, superava também uma teologia estreita e propunha
uma visão mais profunda não somente da teologia, mas de toda a vida cristã.
Pode se constatar a magnitude do Movimento Litúrgico somente no contexto
histórico de uma interpretação muito insuficiente da liturgia. Por exemplo,
desde o tempo de Leão XIII, se recitava o Rosário na Missa durante o mês de
outubro, e era ainda o costume quando era jovem. A Missa era, pois, na verdade,
como escrevi no prefácio de meu livro, um afresco coberto. Deste modo,
redescobrir que a liturgia em si mesma está viva e é uma realidade viva da
Igreja como tal, era um enriquecimento muito importante para a Igreja.
Portanto, foi superado realmente os mal-entendidos, ideias e visões
insuficientes da liturgia e da teologia. Inclusive creio que a explosão da
reforma do século XVI foi possível também porque já não havia uma verdadeira
compreensão da liturgia. Para Lutero, da Missa somente ficava a consagração e a
distribuição da santa Comunhão.
Mas neste progresso
real que o Movimento Litúrgico produziu - orientado até o Vaticano II, até a
Sacrosanctum Concilium -, também havia um perigo: o desprezo da Idade Média
como tal, da teologia escolástica como tal. A partir desse momento começou já
uma divisão de caminhos: Dom Casel se mostrou muito exclusivista a favor da
teologia patrística, tal como ele a via, e do platonismo litúrgico, tal e como
ele o pensava. Estas ideias unilaterais perigosas foram posteriormente
popularizadas como slogans muito tristes e perigosos; assim se dizia então, e
lembro bem: "O pão consagrado não é para ser olhado com os olhos, mas para
ser comido". Era um lema contra a adoração eucarística; se pensava que
toda a realidade, todo o desenvolvimento realizado na Idade Média era errôneo.
Consequentemente, houve um rigorismo e um arqueologismo litúrgicos que, ao
final, se converteram em um grande perigo. Já não se podia entender que,
inclusive as novidades da Idade Média - a adoração eucarística e logo a piedade
popular, toda ela - eram realmente desenvolvimentos legítimos. Sobretudo, a sínteses
entre as diferentes correntes já não era então possível: Guardini se distanciou
de Maria Laach porque ele defendia o Rosário, a Via Crucis, a adoração
eucarística, enquanto que os demais tinham uma posição estrita que já não
admitia estes desenvolvimentos posteriores.
Portanto, esta questão
- discutida já ontem - segue aberta: qual é a síntese possível e a visão
profunda comum entre a teologia medieval e os Padres? Creio que Santo Tomás de
Aquino é tanto um teólogo que abre a porta a uma nova visão da teologia, com a
integração do aristotelismo, como um teólogo perfeitamente patrístico: partindo
dele, se deveria ter a possibilidade de encontrar esta síntese. Guardini
escreveu, no início dos anos 20, um diálogo muito interessante entre um
exegeta, professor de universidade, racionalista, mas ortodoxo - como existiam
nas universidades alemãs nesta época -, um liturgista rigoroso e um diretor de
Caritas representante da piedade popular especialmente do Sagrado Coração;
buscava neste tria-logo uma síntese, e isto há ainda de se fazer.
Parece-me que já nos
anos 50 e, sobretudo, depois do Concílio, os perigos latentes e também patentes
do Movimento Litúrgico se converteram em uma grande tentação, um grande perigo
para a Igreja. Havia depois do Concílio uma nova situação porque os liturgistas
haviam passado, de fato, a ser a autoridade; se reconhecia cada vez menos a
autoridade da Igreja; agora era o perito quem detinha a autoridade. Esta
entrega de autoridade aos peritos transformou tudo, e estes peritos, por sua
parte, foram vítimas de uma exegese profundamente condicionada pelos juízos do
protestantismo, a saber, que o Novo Testamento estava contra o sagrado, em oposição
ao culto e sacerdócio e, portanto, em contraposição com a grande tradição,
especialmente com a do Concílio de Trento. Se defendia a ideia de que o Novo
Testamento estava em oposição ao culto porque se separa do Antigo Testamento,
do templo. Agora o culto seria a realidade vivida, sofrida por Cristo
crucificado fora dos muros da cidade. Isto quer dizer que agora é no profano
onde se deveria ver o verdadeiro culto e que a ruptura com o sacerdócio
levítico seria também a ruptura com o sacerdócio como tal: o presbiterado não
seria o sacerdócio; o sacerdócio seria algo do Antigo Testamento ou pagão, não
uma coisa do cristianismo. Esta interpretação do Novo Testamento em uma
perspectiva - uma hermenêutica - fundamentalmente protestante e secularizante
se fez cada vez mais forte com o tempo.
Por último, parece-me
que a mudança da Igreja universal à Igreja local, e da Igreja local à
comunidade local - como nos disse o professor De Mattei - foi e é, neste
momento, um dos maiores problemas. Diz-se agora que a liturgia reflete a
experiência religiosa da comunidade e que a comunidade é o único sujeito
verdadeiro; isto nos conduz, de fato, não somente até uma fragmentação total da
liturgia, mas até uma destruição da liturgia como tal, já que se a liturgia é somente
o reflexo das experiências religiosas da comunidade, já não comporta a presença
do mistério. É, pois, o ponto sobre o qual se deve firmemente resistir; há que
redescobrir a Igreja - o corpo de Cristo - como o verdadeiro sujeito da
liturgia. Assim pois, é preciso dar-se conta de que com uma exegese
secularizada e uma hermenêutica profundamente protestante e secularizada, não
se podem encontrar no Novo Testamento os fundamentos da nossa fé; e que com a
fragmentação da liturgia considerada como o ato particular das comunidades
locais, se perde a Igreja, e com a Igreja a fé e o mistério. Deve-se voltar, no
entanto, a uma exegese arraigada na realidade viva da Igreja, da Igreja de
todos os tempos, também a medieval. Deve-se reencontrar também, consequentemente,
a realidade cultural e o sacerdócio no Novo Testamento, e recobrar o que é
essencial para a liturgia; neste sentido, queria dizer que, com os limites que
sem dúvida se podem encontrar nos textos de Trento, Trento segue constituindo a
norma, relido com nosso conhecimento mais rico e mais profundo dos Padres e do
Novo Testamento, lido com os Padres e com a Igreja de todos os tempos.
A conferência continua falando sobre o problema dos ritos romanos dentro do rito romano.
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Para citar: RATZINGER, Joseph Aloisius. Obras completas: Teologia da liturgia. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012. 561 p. ISBN: 978-84-220-1609-0. Publicado no blog Regozija-te com a verdade, aos 16 de maio de 2016. Tradução de Gabriel Luan Paixão Mota.
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