GAUDETE
ET EXSULTATE:
Uma exortação e muitos erros de citação
Por Luisella Scrosati - Nuova Bussola Quotidiana
Boaventura, Tomás
de Aquino, Agostinho e o Catecismo: algumas passagens chave da Exortação
apostólica sobre a santidade inclui citações parciais que distorcem o
sentido do texto dos autores.
Assim como
aconteceu com Santo Tomás na Exortação Apostólica Amoris Laetitia, também na
Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE), apresentada na segunda-feira,
há, infelizmente, algumas citações "criativas" para fundamentar
afirmações e teses que de outra forma não teria ligação com tradição.
Vamos começar com
o número 49, onde inclusive apontaremos para uma tríplice coroa [de erros].
Estamos na parte da Exortação dedicada aos pelagianos, aquela em que o Papa
atinge com mais voracidade sobre o que ele considera as ameaças mais graves para a
Igreja. O papa identifica os pelagianos como aqueles que «dirigem os fracos
dizendo-lhes que tudo se pode com a graça de Deus» (n. 49), mas «no fundo
muitas vezes transmitem a ideia de que tudo se pode com a vontade humana"
(n. 49). Desta forma «se pretende ignorar que "nem todos podem fazer
tudo"(47)». O texto remete à nota de rodapé 47, que indica referência à
obra de São Boaventura, "As seis asas do Serafim", e ao fato de que
esta citação deve ser entendida em linha com o Catecismo da Igreja Católica
(CIC), número 1735 (dedicado a inimputabilidade de um ato). Imediatamente depois
se cita Santo Tomás para sustentar que «nesta vida as fragilidades humanas não
são curadas completamente e definitivamente pela graça» (n. 49) e, finalmente,
a Santo Agostinho, para relançar a tese do 'bem possível', amplamente sustentada
na Amoris Laetitia (AL), e que o livro de Dom Aristide Fumagalli sobre a
teologia moral do Papa Francisco (da famosa coleção torpemente patrocinada por
Viganò) mostra ser funcional para a possibilidade de se absolver e admitir à
comunhão a quem ainda segue vivendo more uxório [como se fossem casados].
É evidente que a
presença da graça, como diz Santo Tomás, «não torna a curar completamente o ser
humano» (I-II, q.109, a.9, ad.1), mas aqui Tomás está explicando que a ajuda da
graça atual ("ser movido por Deus para agir bem") é necessária para
quem já têm o dom da graça santificante [habitual], porque no homem a carne
permanece sendo fraca. Mas por a graça não curar completamente o homem não
significa, em absoluto, que o homem possa se encontrar em situações que, com a
ajuda da graça, lhe seja impossível observar os mandamentos de Deus. Que é
exatamente a linha interpretativa [liberal] da Amoris Laetitia que "autoriza"
- naturalmente, em alguns casos - atos propriamente conjugais entre um homem e
uma mulher que não são cônjuges.
Que o texto de Gaudete
et Exsultate (GE) faz uso de ambiguidade é algo que resulta bastante evidente pelas
citações omitidas ou truncadas. Veja-se a citação da obra de São Boaventura,
escrita para expor as virtudes de um superior religioso. A frase citada é a
seguinte: «Nem todo mundo pode tudo», expressão tirada do Livro da Sabedoria e
apresentado por São Boaventura para lembrar aos superiores que não devem
exasperar as suas censuras àqueles que estão em dificuldade: «Suportem as
aversões e fragilidades com espírito paciente». Esta recomendação deve ser
compreendida não à luz do número do Catecismo, que trata da inimputabilidade de
um ato (que não tem nada a ver com o contexto do texto escrito pelo santo
franciscano, mas, no entanto, é revelador com relação aonde se quer chegar),
mas entendido na linha daquilo que o santo afirmou no capítulo anterior (II,
9), a saber: que «em primeiro lugar se impeçam e condenem as transgressões dos
mandamentos de Deus; as transgressões dos preceitos invioláveis da Igreja,
etc.». Mas disso não há vestígio na Exortação.
Santo Agostinho
tem uma sorte pior. O texto extraído de "A natureza e a graça" é
citado desta maneira no número 49 da GE: «Deus te convida a fazer o que puder e
a pedir o que não puder». Ponto e final. No entanto, o texto na íntegra diz o
seguinte: «Deus, portanto, não manda coisas impossíveis, mas ao impor um
preceito, te admoesta a fazeres o que está a teu alcance e a suplicares o que
não está. Vejamos, pois, o que o homem pode e o que não pode... Eu digo: o
homem certamente não se justifica por força da vontade, mas com o remédio da
graça lhe será possível o que não é possível por sua natureza, devido à culpa».
No texto na íntegra
fica claro que é precisamente a graça que torna possível o que a natureza não
pode fazer. E o que Deus ordena que o homem suplique, para que ele possa obter
o que não pode? Isto é explicado pelo Concílio de Trento, que cita precisamente
esta afirmação de Agostinho: «Ninguém, no entanto, por mais justificado que
esteja, deve considerar-se livre da observância dos mandamentos... Porque Deus
não te ordena coisas impossíveis, mas que ao ordená-las exorta-te a fazeres
tudo o que podes, e a pedires o que não podes, ajudando-te para que possas....
Porque aqueles que são filhos de Deus amam a Cristo e aqueles que o amam...
guardam suas palavras; coisa que, com o auxílio divino, certamente podem fazer»
(DH 1536).
Deus, portanto,
ajuda para que se possa o que humanamente não se pode e, nesse sentido, os
mandamentos não são impossíveis de serem observados. Disto não há rastro na GE, que
se preocupa em dar murros nos novos pelagianos, que são repreendidos por
confiar pouco na graça, em vez de encorajar a confiança nela [que parece ser
exatamente o que a exortação faz ao supostamente negar que o homem possa, com a
ajuda da graça, observar todos os mandamentos em quaisquer situações].
Certamente, pensar que a lei pode ser observada sem graça é uma atitude
tipicamente farisaica, como recordava a Encíclica Veritatis Splendor, n. 104.
Mas a solução não é repreender aqueles que sustentam que com a graça é possível
observar os mandamentos de Deus, mesmo em situações que parecem impossíveis. É
igualmente farisaica outra atitude mais atual, lembrada no n. 105 da Veritatis
Splendor (VS): «A todos é pedida uma grande vigilância para não se deixar
contagiar pela atitude farisaica que pretende eliminar a consciência da própria
limitação e do próprio pecado, e que hoje se exprime particularmente na
tentativa de adaptar a norma moral às próprias capacidades e interesses, e até
na rejeição do conceito mesmo de norma». Por exemplo, como quando se dissolve a
norma em cada caso individual.
A atitude cristã
consiste num impulso superior que reconhece, ao mesmo tempo, a própria miséria,
a exigência da santidade de Deus e a sua misericórdia, que torna possível ao
homem o que, com suas próprias forças, é impossível: «Aceitar a 'desproporção'
entre a lei e a capacidade humana, ou seja, a capacidade das simples forças
morais do homem deixado a si próprio, aviva o desejo da graça e predispõe a
recebê-la» (VS, n.105).
Não menos grave
também é o caso do número 80 da GE, que abre o comentário sobre a
bem-aventurança evangélica dos misericordiosos: «Mateus resume-o numa regra de
ouro: "o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a
eles" (7, 12). O Catecismo lembra-nos que esta lei se deve aplicar "a
todos os casos"(71), especialmente quando alguém "se vê confrontado
com situações que tornam o juízo moral menos seguro e a decisão
difícil"(72)»
A lei da
misericórdia deve, portanto, ser aplicada em todos os casos, especialmente nas
situações difíceis. Os artigos do Catecismo citados aqui (notas 71 e 72) não
dizem exatamente isso. O número 1787 não apenas recorda que a consciência pode
às vezes encontrar-se em situações difíceis de discernir moralmente, mas
recorda também que, nesses casos, a pessoa «deve sempre buscar o que é justo e
bom e discernir a vontade de Deus expressa na lei divina». Por esta razão, o
número seguinte ensina que «algumas normas são válidas em todos os casos», como
referido na GE, mas antes da regra de ouro afirma-se que «nunca se é permitido
fazer o mal para obter um bem». Curiosamente, da Exortação sobre a santidade
desaparece a referência à lei divina e ao fato de que o mal nunca pode ser
feito.
Mas a distorção
mais grave encontramos no número 106: «Não posso deixar de lembrar a questão
que se colocava São Tomás de Aquino ao interrogar-se quais são as nossas ações
maiores, quais são as obras exteriores que manifestam melhor o nosso amor a
Deus. Responde sem hesitar que, mais do que os atos de culto, são as obras de
misericórdia para com o próximo». O texto citado de Santo Tomás (de II-II, q.
30, a. 4, ad 2) diz o seguinte: «Não adoramos a Deus com sacrifícios e ofertas
exteriores em seu benefício, mas para nosso benefício e para os dos outros.
Deus não precisa dos nossos sacrifícios, e se quer que lhos ofereçamos, é para
nossa devoção e utilidade do próximo. Por isso é que a misericórdia, pela qual
socorremos as deficiências dos outros, é o sacrifício mais agradável a Deus,
por ser o mais imediatamente útil ao próximo».
Na verdade, São
Tomás se perguntava «se a misericórdia é a maior das virtudes» e conclui que
[em relação aquele que a possui] «a misericórdia não é a maior das
virtudes"!, porque, explica Tomás, "para o homem, que tem Deus como
superior, a caridade que o une a Deus, é maior que a misericórdia, pela qual se
suprem as deficiências dos próximos». A maior é a caridade, como vimos, porque
nos une a Deus. E o amor de Deus é cumprido na observância da sua palavra (cf.
Jo 14, 23) e é a constatação do amor pelos irmãos e irmãs. Muitas vezes se
recorda, justamente, o fato de que o amor ao próximo realiza o amor de Deus e
é, portanto, o compêndio da lei, mas nos esquecemos que o amor de Deus é a
condição e prova do nosso amor ao próximo, como São João recorda: «Nisto
reconhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e cumprimos os
seus mandamentos. Porque amar a Deus significa observar os seus mandamentos. E
os seus mandamentos não são pesados» (1 Jo 5, 2-3).
Em seguida, Tomás
explica que a tão esquecida virtude da religião «é superior a todas as outras
virtudes morais" (II-II q 81, ad. 6), sempre em relação a Deus e está
vinculada, de maneira especial, precisamente à caridade. De fato, «a religião
se aproxima de Deus mais estreitamente do que as outras virtudes morais, pois
cumpre atos que, direta e imediatamente, são ordenados ao amor de Deus». Entre
esses atos, conforme explicado no Catecismo (n. 2095 e seguintes.), se incluem
a adoração, a oração, o sacrifício, as promessas e os votos.
É estranho que
isso não seja citado em uma exortação sobre a santidade, visto que Santo Tomás
explica que «religião e santidade são a mesma coisa» (II-II, q. 81, 8), porque
em ambos os casos «é a aplicação que o homem faz de sua mente e seus atos a
Deus»; no caso da religião, principalmente por «atos que se referem ao serviço
de Deus", enquanto que para a santidade «também por todos os atos das
outras virtudes o homem se refere a Deus», entre os quais, certamente as obras
de misericórdia.
Essa ordem de
coisas não é encontrada na GE, que faz declarações unilaterais como a do número
107: «Quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida, quem
realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo, é
chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de
misericórdia». Ou, pior ainda, a do número 26: «Não é saudável amar o silêncio
e esquivar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a atividade,
buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e integrado
como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do caminho de
santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da ação, e
santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão».
___
Para
citar: Luisella
Scrosati. Gaudete et Exsultate: uma
exortação e muitos erros de citação. Publicado originalmente em La Nuova
Bussola Quotidiana. Traduzido e publicado no blog Regozija-te com a Verdade por
Gabriel Luan P. Mota aos 14 de abril de 2018.
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