“Eu
te absolvo”
Reflexões do Cardeal Müller sobre a
Confissão
Muitos sugerem hoje que a absolvição
sacramental pode ser dada a penitentes que, devido a circunstâncias atenuantes,
podem ser ditos livres de culpa subjetiva diante de Deus, mesmo que continuem vivendo em um estado objetivo de pecado grave.
A distinção entre um estado objetivo do pecado e uma culpa subjetiva é
geralmente reconhecida pela tradição teológica católica. O que é mais
controverso é a sua aplicação à ordem sacramental. É possível usar a provável
ausência de culpa subjetiva como critério para a concessão da absolvição? Isso
não significaria converter os
sacramentos em realidades subjetivas, que são contrárias à sua própria
natureza como sinais de graça efetivos, visíveis e, portanto, objetivos?
Para responder a esta pergunta, é necessário
ir às raízes do sacramento da reconciliação. Em seu amor por nós, Deus toma os
seres humanos tão seriamente que entrega seu Filho unigênito à morte mais
horrível e vergonhosa na Cruz (Jo 3, 16), para que nossos pecados possam ser
perdoados e possamos reconciliar-nos com Ele (2 Cor 5,19). Se tal é o preço da
nossa salvação, então os bispos e os sacerdotes não podem levar de forma
leviana a autoridade que receberam do próprio Cristo (Mt 18, 18; Jo 20, 22)
para perdoar os pecados que um penitente confessou e se arrependeu.
Porque é com a autoridade divina que o
apóstolo pronuncia a palavra de reconciliação aos fiéis (2 Cor 5,20). O
sacramento da reconciliação com Deus e com a Igreja como corpo de Cristo exige
a confissão de todos os pecados graves em sua totalidade. Esta necessidade deriva da preocupação com a salvação eterna
que, como tal, tem maior importância do que o sentido transitório de conforto
de um cristão, a que o confessor possa ter medo de perturbar. Para julgar
se deve perdoar ou reter os pecados de alguém (Jo 20,23) o sacerdote deve
conhecer quais pecados graves o penitente cometeu. Estes são os pecados
públicos e privados cometidos em seus pensamentos, palavras, ações e omissões,
que violaram os mandamentos de Deus, que são a revelação de seu santo e
santificador plano de amor por nós.
Leia também: A explicação do Cardeal Coccopalmerio esclarece a Amoris Laetitia?
Leia também: A explicação do Cardeal Coccopalmerio esclarece a Amoris Laetitia?
Não basta simplesmente chamar-se pecador em
geral. Isso poderia facilmente ser uma desculpa: está sujeito à fraqueza
humana, como todos os outros. Os pecados seriam então relativizados como
defeitos humanos omnipresentes. Na realidade, no entanto, o cristão batizado
não está aprisionado na dialética de Lutero de simul iustus et peccator ("ao mesmo tempo, uma pessoa justa e
pecadora"). Através do batismo, fomos verdadeiramente regenerados. Já não
somos escravos do pecado, mas nos tornamos amigos e filhos de Deus. Estamos em
um estado de graça santificante. Não é necessário que o pecado se separe da
fraqueza restante (concupiscência). Pelo contrário, o pecado é o resultado de
um ato consciente e deliberado contra a santidade de Deus e o amor de Cristo
que derramou seu sangue na Cruz para o perdão dos pecados. Foi ao aceitar
livremente a fé e a graça que nos convertemos em filhos de Deus. Do mesmo modo,
necessitamos cooperar com a vinda do Reino a este mundo, servindo o cumprimento
da vontade de Deus na terra como é no céu. Toda a vida do cristão é uma
imitação contínua do Senhor crucificado e ressuscitado. Pelos pecados graves
nos separamos de Deus e nos excluímos da herança da vida eterna.
O
amor não torna desnecessário o cumprimento dos mandamentos de Deus
O amor não torna desnecessário o cumprimento
dos mandamentos de Deus, senão que é sua forma mais profunda de realização. Os
mandamentos não são receitas externas, que prometem recompensas àqueles que as
cumprem e ameaçam com castigo àqueles que não as observam. Em vez disso, eles
são a revelação do plano salvífico de Deus, que indica o caminho do seu amor.
Todo pecado mortal é uma contradição consciente e deliberada da vontade de
Deus. Este é o aspecto formal que
converte um ato mau em um pecado mortal, cujo aspecto material é o conteúdo da
ação. Por isso, o apóstolo Paulo pode dizer categoricamente: "Nem os
imorais nem os idólatras nem os adúlteros... herdarão o reino de Deus" (1
Cor 6, 9-10).
O Concílio de Trento (1551) ensina que os
pecados mortais nos tornam inimigos de Deus e nos levam à condenação eterna a
menos que nos arrependamos, confessemos nossos pecados e, com as obras de
reparação, obtenhamos a absolvição e a restauração do estado de graça
santificante. O penitente, portanto, tem que confessar ao seu confessor todos
os pecados mortais públicos e privados de que tem conhecimento após um sério
exame de consciência (DH 1680). Ele ou ela também precisa indicar aquelas
circunstâncias que podem mudar a natureza do pecado (DH 1681). O que é referido
aqui não são as circunstâncias atenuantes que reduzem a gravidade da culpa e
nos fazem merecer uma pena menor. Em vez disso, se refere àquelas circunstâncias que mudam a espécie do ato e,
portanto, exigem um tipo diferente de penitência e castigo, que deve ser
determinado pelo confessor que atua como juiz. É importante enfatizar que a
motivação do confessor é a salvação do penitente.
Portanto, o Concílio tem toda razão ao
rejeitar a polêmica protestante que vê nesse requisito de confissão de todos os
pecados uma espécie de "tortura de consciência" no confessionário (DH
1682). O que acontece se o penitente não é responsável por seus pecados, por
falta de conhecimento ou responsabilidade? A liberdade de uma pessoa pode ser
afetada devido à ignorância. Somente
Deus é capaz de julgar a culpabilidade subjetiva de uma pessoa. Tudo o que
o confessor pode fazer é ajudar cuidadosamente o penitente em seu exame de
consciência. Mas nem mesmo o penitente é
capaz de dizer em que medida Deus o responsabiliza pelo pecado. Tratar de
fazê-lo simplesmente significaria justificar-se.
Inclusive se estou consciente de não ter culpa
alguma, não posso estar absolutamente seguro de minha salvação e devo sempre me
confiar ao julgamento da graça de Deus. A
Igreja não pode avançar ao ponto de intervir no juízo de Deus. Os apóstolos
e, portanto, os bispos e sacerdotes são apenas servos de Cristo e
administradores de seus sacramentos. Eles podem administrar os sacramentos como
um meio de graça somente de acordo com a forma como Cristo os instituiu e de
acordo com seu mandato à Igreja.
Absolver
sem ter arrependimento confirma o pecador no erro
Também devemos ter em conta a possibilidade de que a ignorância seja
culpável por si mesma, como quando serve de desculpa para não ter que mudar
o modo de vida. Lembremo-nos do ensinamento do Concílio de Sens, segundo o qual
se pode pecar mesmo que alguém aja com ignorância (DH 730). Mesmo que um
confessor possa encontrar razões que falem em favor da responsabilidade
diminuída de um penitente, o confessor não deve esquecer que essas mesmas
razões o impedem de discernir sua situação diante de Deus da maneira correta. De
toda forma, dizer "eu te absolvo" nesses casos equivaleria a confirmar o erro em que a pessoa vive, um erro que
prejudica profundamente a sua capacidade de viver de acordo com o plano amoroso
de Deus.
É crucial recordar que os sacramentos não são
encontros privados e interiores dos fiéis com Deus, mas expressões visíveis da
fé da Igreja. Esta é a razão pela qual a disciplina eclesial que governa a
admissão aos sacramentos sempre exigiu que os fiéis não estejam em contradição
com o modo de vida cristão. Santo Tomás diz que admitir alguém aos sacramentos
que continua a viver em pecado significa
introduzir "uma falsidade nos sinais sacramentais" (Suma III,
q.68, a.4). Portanto, alguém poderia
estar sem culpa diante de Deus por causa da ignorância invencível e ainda assim
não ser capaz de receber a absolvição.
Leia também: É possível corrigir um Papa?
As palavras "eu te absolvo dos teus pecados" não ratificam a falta de responsabilidade do arrependido diante de Deus. Em vez disso, elas expressam e adquirem sua reconciliação com Deus, sua reincorporação no corpo visível de Cristo, que é a Igreja. Portanto, para que essas palavras sejam significativas, o penitente deve tomar a firme resolução de viver de acordo com o modo de vida que Cristo nos ensinou e que a Igreja dá testemunho no mundo. Fazer o contrário seria "subjetivar" a economia sacramental da Igreja, convertendo-a em uma função do nosso relacionamento invisível com Deus. Significaria descartar os sacramentos da carne visível de Cristo e seu corpo, que é a Igreja.
As palavras "eu te absolvo dos teus pecados" não ratificam a falta de responsabilidade do arrependido diante de Deus. Em vez disso, elas expressam e adquirem sua reconciliação com Deus, sua reincorporação no corpo visível de Cristo, que é a Igreja. Portanto, para que essas palavras sejam significativas, o penitente deve tomar a firme resolução de viver de acordo com o modo de vida que Cristo nos ensinou e que a Igreja dá testemunho no mundo. Fazer o contrário seria "subjetivar" a economia sacramental da Igreja, convertendo-a em uma função do nosso relacionamento invisível com Deus. Significaria descartar os sacramentos da carne visível de Cristo e seu corpo, que é a Igreja.
Há um caso de natureza completamente
diferente se, por razões externas, era impossível esclarecer canonicamente o
status de uma determinada união e, por exemplo, um homem tem provas de que o
casamento anterior com uma mulher era inválido, embora por algum motivo ele não
possa provar no foro eclesial. Este caso é completamente diferente daquele em
que uma pessoa validamente casada que pede o sacramento da Penitência, sem
querer abandonar uma relação sexual estável com outra pessoa, seja como um
concubinato ou como um "casamento" civil, o qual não é válido diante
de Deus e da Igreja. Enquanto que nesta última situação há uma contradição com
a prática sacramental da Igreja (uma
questão de direito divino), na primeira o debate se centra no modo de
determinar se um matrimônio era nulo ou não (uma questão de lei eclesiástica).
O
Cristo justo contra o Jesus misericordioso
Teologicamente, as coisas são muito claras. As
palavras de Cristo, o ensinamento dos Apóstolos e, portanto, o dogma da Igreja,
constituem um guia claro para qualquer esforço pastoral para apoiar o cristão
individual em sua peregrinação a Deus. Foram os antigos fariseus (cujo nome
hoje em dia é frequentemente usado como termo depreciativo) que tentaram
colocar Jesus no mesmo lugar em relação à indissolubilidade do casamento. Por
um lado, todos querem se apegar à indissolubilidade conjugal como parte do
plano do Criador para o matrimônio entre um homem e uma mulher. Por outro lado,
alguns procuram contornar o mandamento
de Cristo. Seu pretexto é que, além do "Cristo rigoroso" como
legislador da Nova Aliança, há também o "Jesus misericordioso" do
Evangelho, familiarizado com o fato de que o ideal enfrenta a realidade
concreta da humanidade que é interrompida pelo pecado de Adão. No entanto, Jesus responde não como fariseu, mas contra
os fariseus, e mesmo contra a objeção dos apóstolos que afirmam conhecer a
práxis humana e a realidade melhor que o próprio Jesus, que "aquele que se
divorcia de sua mulher e se casa outra comete adultério", que também se
aplica a uma mulher que se casa com um homem que não é solteiro ou viúvo (Mc
10, 11-12).
De acordo com o apóstolo Paulo, se os cônjuges
se separarem, deveriam se esforçar para se reconciliar. Se a reconciliação não
for possível, eles devem permanecer solteiros até a morte do companheiro
legítimo (1 Cor 7, 11,39). Todos concordam que a recepção sacramental da Sagrada
Comunhão só é frutífera quando se encontra em estado de graça santificante.
Porém, independentemente da questão do
estado subjetivo de graça de alguém (ao qual somente Deus é juiz) é necessário
que aqueles que vivem em uma contradição objetiva com os mandamentos de Deus e
a ordem sacramental da Igreja tomem a determinação de mudar seu modo de vida
para receber a reconciliação com Deus e a Igreja no sacramento da penitência.
Leia também: Reflexões da Dra. Anna Silvas sobre a Amoris Laetitia (Parte 01)
Em muitas situações complicadas, diante de ideologias hostis ao matrimônio e em um contexto em que a transmissão da fé tem sido muitas vezes superficial, o sábio administrador da graça divina guiará gentilmente os cristãos, que buscam sinceramente uma vida de fé, para ver a situação familiar à luz do Evangelho de Cristo. Nos casos em que há motivos graves para não ser dissolvido o [segundo] vínculo e onde não seja possível obter uma declaração de nulidade do primeiro casamento, a finalidade deste caminho, muitas vezes difícil e longo, é que as pessoas vivam juntas como irmãos e irmãs e, portanto, também tenham acesso à Sagrada Comunhão.
Em muitas situações complicadas, diante de ideologias hostis ao matrimônio e em um contexto em que a transmissão da fé tem sido muitas vezes superficial, o sábio administrador da graça divina guiará gentilmente os cristãos, que buscam sinceramente uma vida de fé, para ver a situação familiar à luz do Evangelho de Cristo. Nos casos em que há motivos graves para não ser dissolvido o [segundo] vínculo e onde não seja possível obter uma declaração de nulidade do primeiro casamento, a finalidade deste caminho, muitas vezes difícil e longo, é que as pessoas vivam juntas como irmãos e irmãs e, portanto, também tenham acesso à Sagrada Comunhão.
Leia também: Reflexões da Dra. Anna Silvas sobre a Amoris Laetitia (Parte 02)
Além disso, não devemos esquecer que a fé católica não reduz o mistério da Eucaristia à recepção da Sagrada Comunhão. O que é decisivo é, antes de tudo, a participação no Sacrifício Eucarístico. A principal preocupação dos pastores da Igreja deve ser o cumprimento dos fieis de sua obrigação dominical. Deus certamente não negará seu amor àqueles que, apesar das repetidas falhas, pede humildemente sua graça, para que possam cumprir os mandamentos. Especialmente em vista de nossos próprios pecados, devemos respeitar e ajudar amorosamente, na nossa peregrinação comum, aqueles nossos irmãos e irmãs que sentem que estão em um dilema quando se trata de situações familiares e que, apesar de sua boa vontade, eles nem sempre conseguem viver de acordo com os mandamentos de Deus. É verdade que os confessores também são juízes. Mas eles desempenham esse papel não por orgulho humano, para condenar o pecador. Em vez disso, seu juízo é como o diagnóstico de um médico sábio, que procura conhecer a natureza da doença e depois derrama azeite e vinho nas feridas, assim como fez o samaritano misericordioso, devolvendo as pessoas ao refúgio da Santa Mãe Igreja.
Além disso, não devemos esquecer que a fé católica não reduz o mistério da Eucaristia à recepção da Sagrada Comunhão. O que é decisivo é, antes de tudo, a participação no Sacrifício Eucarístico. A principal preocupação dos pastores da Igreja deve ser o cumprimento dos fieis de sua obrigação dominical. Deus certamente não negará seu amor àqueles que, apesar das repetidas falhas, pede humildemente sua graça, para que possam cumprir os mandamentos. Especialmente em vista de nossos próprios pecados, devemos respeitar e ajudar amorosamente, na nossa peregrinação comum, aqueles nossos irmãos e irmãs que sentem que estão em um dilema quando se trata de situações familiares e que, apesar de sua boa vontade, eles nem sempre conseguem viver de acordo com os mandamentos de Deus. É verdade que os confessores também são juízes. Mas eles desempenham esse papel não por orgulho humano, para condenar o pecador. Em vez disso, seu juízo é como o diagnóstico de um médico sábio, que procura conhecer a natureza da doença e depois derrama azeite e vinho nas feridas, assim como fez o samaritano misericordioso, devolvendo as pessoas ao refúgio da Santa Mãe Igreja.
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Cardeal Dom Gerhard Ludwig Muller, ex-prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé.
***
Para citar: Muller, Cardeal Gerhard Ludwig. Eu
te absolvo: Reflexões do Cardeal Müller sobre a Confissão. Publicado no
blog Regozija-te com a verdade, aos 17 de dezembro de 2017. Tradução de Gabriel
Luan Paixão Mota. Originalmente a matéria foi publicada em First Things.
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