DESEJO DE MUDAR
A
EXPLICAÇÃO DE COCCOPALMERIO ESCLARECE A AMORIS LAETITIA?
O Cardeal
Francesco Coccopalmerio publicou um livro no qual ele apresenta reflexões sobre
o capítulo oito, sobre as uniões irregulares, da Exortação Apostólica Amoris
Laetitia, polêmico documento de origem sinodal, a fim de interpretá-lo respeitando
a doutrina católica. Mas será que o escrito do cardeal realmente põe fim às
dúvidas levantadas sobre o confuso texto da exortação?
Pois bem. O
que se segue é uma análise do que considero ser o núcleo da argumentação do
livro, sem, porém, pretender encerrar a questão, mas tendo apenas como objetivo
avaliar se o problema da exortação foi sanado.
Certamente
há outros pontos interessantíssimos a serem analisados no texto do Cardeal
Coccopalmerio, mas limito-me a discutir o que ele considera as duas condições
essenciais para que os recasados civilmente possam se confessar e comungar. Diz
ele que "poderia se admitir ao sacramento da Penitência e da Eucarística
os fiéis que se encontram em união não legítima, mas que tenham duas condições
essenciais: que desejem mudar de situação, mas não possam levar a cabo seu
desejo."[1] Dessa forma, os dois critérios seriam (1) o desejo
de mudar de situação e (2) uma impossibilidade de o fazer.
À primeira
vista parece-nos que o argumento é razoável, porém contém problemas em ambas as
premissas. Nessa altura quero novamente limitar mais uma vez o campo de debate,
ao tratar apenas da primeira condição, ignorando a segunda (que deixo para
outra oportunidade).
A questão
a ser levantada e investigada é a seguinte: é suficiente o desejo de mudar de
situação para que seja possível ascender ao Sacramento da Confissão? Isto é o
que se propõe verificar, porque uma vez possível confessar-se validamente, é
forçoso admitir o perdão dos pecados e a possibilidade da comunhão eucarística.
Isto porque o Sacramento da Confissão é o meio pelo qual aqueles que, depois do
batismo, estejam conscientes de haver cometido pecado grave devem passar para
chegar ao Sacramento da Eucarística, ou melhor, à comunhão eucarística.
O que diz
a doutrina católica sobre o assunto? O que é necessário para confessar-se? Diz
que, entre outras coisas, é necessário possuir contrição com firme resolução de
não mais pecar (Catecismo da Igreja Católica, 1451), remetendo ao Concílio de
Trento, que assim diz na Sessão XIV:
"A contrição, que tem o primeiro lugar entre os mencionados atos do
penitente, é uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com propósito de
não tornar a pecar (cum proposito non peccandi de cetero). Este movimento de
contrição foi necessário em todo o tempo para se alcançar o perdão dos
pecados."[2]
Dessa
forma, fala-se em propósito, firme propósito para ser mais preciso, não de um
desejo. Mas seria desejo o mesmo que propósito? Segundo Rocha Pombo, desejar,
donde vem desejo, é "ter vontade de conseguir ou de gozar alguma coisa: é
querer com mais gosto"[3] e propósito é "resolução tomada,
firme determinação"[4], levando-nos a concluir que os termos
não possuem o mesmo significado.
No
entanto, é necessário ir além de qualquer comparação linguística. Convém saber
se há a mesma distinção no ensino católico, por isso, transcrevo abaixo o que
diz Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo e Doutor da Igreja.
"Os santos desejos são asas que nos fazem voar da terra. Por um
lado, Eles nos dão força; para caminhar na perfeição, por outro lado, eles nos
aliviam os sofrimentos da caminhada. É um grande erro dizer como alguns dizem:
Deus não quer que todos sejam santos. «Esta é a vontade de Deus, a vossa
santificação». [Porém] Não basta só o desejo de ser santo, se não juntamos a
ele uma firme resolução de alcançá-lo. Quantas pessoas se alimentam só de desejos
e nunca dão um passo no caminho de Deus. Estes são os desejos de que fala a
Bíblia: «Os desejos do preguiçoso o matam». O preguiçoso deseja sempre e nunca
se decide a empregar os meios próprios de seu estado de vida para se tornar
santo."[5]
Fica claro
que os termos não se coincidem na significação. Por causa disso, diz Padre
Paulo Ricardo que “não adianta querer vagamente amar a Deus, se não se faz o
firme propósito, a «determinada determinación» de agradá-Lo” [6],
citando Santa Teresa de Jesus. Entre desejar, querer, intencionar, etc. e tomar
firme propósito ou resolução há um abismo, não obstante o fato de que se requer
o primeiro para a existência do segundo. Ao que ajunta o Padre Divino Antônio
Lopes, FP, ao afirmar que “o firme propósito de não tornar a cair nos pecados
não é simples intenção e mero desejo; mas sim, determinação enérgica de não
mais pecar."[7]
Esse
propósito deverá ser firme, eficaz (prático), universal, interior e soberano,
segundo explicam respectivamente o Padre Bernardo, monge cisterciense, e o
Monsenhor Eugene Cauly, vigário de Reims (França), abaixo.
"O propósito é a vontade firme de não mais pecar no futuro, e deve
ser firme (isto é, o penitente deve
ter a vontade sincera de não recair nunca mais no pecado, apesar das
dificuldades), eficaz (isto é, o
penitente deve não só ter a vontade de não pecar, mas também de usar os meios
necessários para evitar a recaída no pecado, especialmente de evitar as
ocasiões próximas de pecado) e universal
(isto é, o propósito deve estender-se a todos os pecados cometidos,
especialmente aos mortais. É suficiente que o propósito seja concebido de forma
genérica: “não quero pecar mais”)." [8]
“O firme propósito é a resolução bem decidida de não tornar a cair nos
pecados que se tem cometido e que foram confessados com arrependimento. Não é,
pois, simples intenção, mero desejo; mas sim, determinação enérgica de não mais
pecar. Para ser sincero e verdadeiro, o firme propósito, como a contrição, deve
ser: interior, isto é, no coração e
na vontade e não unicamente nos lábios; universal,
isto é, deve abranger todos os pecados mortais sem exceção, especialmente
aqueles em que caímos mais facilmente; soberano,
isto é, superior a todos os vínculos, até os partirmos, superior a todas as
dificuldades até as vencermos corajosamente; e prático, isto é, ter sua aplicação circunstanciada e seus meios de
execução; este último sinal será a pedra de toque e real prova da existência
verdadeira do firme propósito.” [9]
Assim,
o propósito não é apenas um mero desejo, mas inclui a vontade sincera e
interior de não mais cair em nenhum pecado (principalmente mortal), de empregar
os meios para tornar realidade esse desejo, e acima de qualquer coisa ou adversidade. Um
recasado civilmente que tenha apenas o desejo de sair do estado de adultério,
mas que não tome resolução de a isso cumprir (isto é, separar-se do seu
conjugue ilegítimo ou abster-se das relações conjugais com ele, se o primeiro
caso não é possível, como no caso do cuidado de filhos oriundos da nova união),
não tem verdadeira contrição e, por isso, não pode confessar-se validamente, o
que impossibilita a comunhão eucarística.
Resumindo isso, é interessante ler
o que disse Dom Steven Lopes, bispo do Ordinariato Pessoal da Cátedra de São
Pedro (ex-anglicanos dos Estados Unidos), em uma Carta Pastoral sobre a
interpretação da Amoris Laetitia.
“Um casal que se casou novamente, se está comprometido em abstinência
completa, pode ascender à Eucaristia, depois de um sério discernimento com seu
pastor e recorrendo ao sacramento da Reconciliação. Este casal também pode
experimentar o quão difícil é a continência, e às vezes pode cair, e em tais
casos, eles, como todos os cristãos, devem arrepender-se, confessar seus
pecados e começar de novo.
A Reconciliação exige o arrependimento, «a dor da alma e ódio pelo
pecado cometido com o propósito de não voltar a pecar» (Catecismo da Igreja
Católica, n. 1451). Um casal que se casou novamente no civil, firmemente
decidido a uma castidade completa se compromete então em não mais pecar, o que
é totalmente diferente do casal que se casou no civil e não tem uma firme
vontade de viver castamente, mesmo que possam experimentar dor pelo fracasso
de seu primeiro casamento. Em uma situação como esta, em que ou não reconhecem
que sua falta de castidade é adultério ou não tem a firme resolução de evitar o
pecado, é um pecado grave. Em ambos os casos, a disposição necessária para a
reconciliação não existe, por isso eles receberão a Eucaristia em um estado de
pecado grave. A menos e até que os recasados civilmente tentem abster-se
totalmente das relações sexuais, a disciplina sacramental não permite que
recebam a Eucaristia.” [10]
Portanto,
fica demonstrado que o texto do Cardeal Coccopalmerio não encerra o debate. Por
outro lado, é importante destacar que o seu texto é mais restritivo do que os
oferecidos por outros prelados, como Kasper & CIA, porque ele explica que
fora do caso em que há as duas condicionantes não é possível a confissão e a
comunhão, como, por exemplo, no caso do fiel que "sabendo que está em
pecado grave e podendo dele sair, não tiver nenhuma sincera intenção para levar
a cabo tal propósito".
Para
finalizar deixo para reflexão duas histórias, uma de um rapaz e outra de uma
moça em confissão, que o Padre Luiz Chiavarino conta em seu livro «Confessai-vos
bem».
Um tal confessava que tinha roubado uns feixes de lenha.
— Quantos? Perguntou o confessor.
— Padre, eu tirei cinco, mas o senhor pode calcular sete.
— Como! São cinco ou sete?
— Eu explico Padre. Dos sete feixes que encontrei tirei cinco, mas hoje
à noite irei buscar os outros dois. Confesso-me antecipadamente; por isso o
senhor pode calcular sete.
Uma moça que tinha acabado de se confessar, perguntou depois de receber
a absolvição:
— Padre, posso comungar hoje?
— Pode sim, e não só hoje como amanhã e nos dias seguintes.
— Ah, amanhã já não poderei mais porque marquei um encontro no baile
hoje á noite e não posso faltar.
— Você falou em baile? Mas você não acabou agora mesmo de prometer a
Jesus que não O ofenderia mais e que evitaria as ocasiões?
— Padre, eu prometi para o passado e não para o futuro!
Eis aí. A maior parte das vezes promete-se para o passado, isto é, não
se promete nada, e assim, a história se repete sempre: confissões e pecados,
pecados e confissões. Mas, confessar-se sem se emendar é o caminho certo para a
perdição.
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Notas
[1] – Cardeal Francesco Coccopalmerio, «El capítulo octavo de la
exhortación apostólica post-sinodal “Amoris laetitia”» (2017), Librería
Editrice Vaticana, em matéria publicada pelo Vatican Insider, disponível aqui.
Tradução minha.
[2] – Concílio de Trento, Sessão XIV, disponível no Denzinger, 1676.
[3] – Rocha Pombo, «Dicionário de sinônimos da língua portuguêsa»
(2011), Academia Brasileira de Letras, p. 174.
[4] – Ibdem.
[5] – Santo Afonso Maria de Ligório, «A prática de amor à Jesus Cristo»,
p. 37.
[6] – Padre Paulo Ricardo, «Como progredir na caridade?» (Direção
espiritual), disponível aqui.
[7] – Padre Divino Antônio Lopes, FP, «Propósito de emenda»
(Pensamentos), disponível aqui.
[8] – Padre Bernardo, «O Sacramento da Penitência e Reconciliação»,
disponível aqui
[9] – Monsenhor Eugene Cauly, «Curso de Instrução Religiosa» (1951),
número 285, p. 359.
[10] – Dom Steven J. Lopes, Carta Pastoral «Uma fidelidade a toda
prova», em matéria disponibilizada por Sandro Magister no Settimo Cielo,
disponível aqui.
Tradução minha.
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Para citar: MOTA,
Gabriel Luan Paixão. Desejo de mudar: a explicação de Coccopalmerio esclarece a Amoris Laetitia?. Publicado
no blog Regozija-te com a verdade, aos 15 de fevereiro de 2017.