Alice no país da "Amoris Laetitia" [Parte 02]
A dilacerante crítica da Exortação pós-sinodal por parte de uma estudiosa australiana. "Perdemos todo ponto de apoio e caímos, como Alice, em um universo paralelo, no qual nada é o que parece ser".
3.
LEITURA DO CAPÍTULO 8
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Cardeal Walter Kasper |
"Os esposos... não podem ver a lei só como puro ideal a conseguir no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de Cristo de superar cuidadosamente as dificuldades. Por isso, a chamada 'lei da graduação' ou caminho gradual não pode identificar-se com a 'graduação da lei', como se houvessem vários graus e várias formas de preceito na lei divina para homens em situações diversas. Todos os conjugues são chamados, segundo o plano de Deus, à santidade no matrimônio [...]"
A nota 329 da Amoris Laetitia apresenta
também outra corrupção oculta. Cita a passagem n. 51 da Guadium et Spes sobre a
intimidade da vida conjugal. Mas através de um truque sutil aplica o texto para
os divorciados que se casaram novamente. Tais corrupções indicam com segurança
que as referências e as notas, que neste documento são utilizadas como pilares,
devem ser adequadamente verificadas.
No número 297 já vemos a responsabilidade
das "situações irregulares" transmitida ao discernimento dos
pastores. Passo a passo, sutilmente, as argumentações levam a uma agenda
precisa. O número 299 pergunta como podem se superarem as "diversas formas de exclusão atualmente
praticadas" e o número 300 introduz a ideia de um "diálogo com o
sacerdote no foro interno". Já não se pode adivinhar aonde vai a
argumentação?
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O pecado mortal nos afasta de Deus (Is 59, 2) |
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Cena de Alice no País das Maravilhas |
Leia também: O que não te contaram sobre as Orações Eucarísticas
Introduzem-se como fundamento uma série de
citações de Santo Tomás de Aquino, sobre as quais não estou qualificada para
opinar, somente posso dizer que, obviamente, seria oportuno verifica-las e
contextualizá-las [n.tr. já existem tomistas comprovando que o sentido dos
textos do Doutor angélico fora corrompido]. O número 304 é uma apologia,
tecnicamente elaborada, da moral casuística, argumentada com termos
exclusivamente filosóficos, sem nenhuma referência à Cristo ou à fé. Não é
possível evitar em pensar que esta passagem é obra de outra mão. Não é o estilo
de Francisco, inclusive supondo que seja seu pensamento.
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"Mais almas vão para o Inferno por causa dos pecados da Carne que por qualquer outro motivo" (Nossa Senhora em Fátima) |
No resto do capítulo o Papa Francisco muda
a direção. Admite de maneira complicada que sua ênfase pode dar "lugar a
confusão" (n. 308), ao que responde com uma discussão sobre a
"misericórdia". No início do n. 7 havia declarado que "todos se sintam muito interpelados pelo
oitavo [capítulo]". Sim, mas preocupado em não o entender com o
sentido heurístico que ele lhe dá. O Papa Francisco, francamente, admitiu no passado
que ele é o tipo de pessoa que gosta de causar "confusão"? Bem, creio
que podemos conceder que aqui, certamente, ele alcançou o tal objetivo.
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O Santo que escreveu a Familiaris Consortio e a Veritatis Splendor |
4. AS IMPLICAÇÕES
QUE EMANAM DA AMORIS LAETITIA
As sérias dificuldades que prevejo,
sobretudo para os sacerdotes, surgem do confronto entre as distintas
interpretações sobre as brechas discretamente abertas em toda a exortação
Amoris Laetitia. O que fará um jovem sacerdote que, bem informado, deseja
manter que os divorciados em segunda união não possam receber a comunhão,
enquanto que seu pároco tem uma política de "acompanhamento" que, ao
contrário, prevê que possa recebê-la? O que fará um sacerdote com um sentido de
fidelidade similar se o seu bispo e sua diocese adotar uma política mais progressista?
O que fará uma região de bispos diante de outra região de bispos, quando cada
grupo de bispos como cortar e dividir as nuances desta nova doutrina, para o
que, no pior dos casos, é considerado pecado mortal de um lado da fronteira e
"acompanhado" e permitido do outro?
Sabemos que já está ocorrendo,
oficialmente, em certas dioceses alemãs e, não oficialmente, na Argentina e
inclusive aqui, na Austrália, há anos, como posso verificar em minha própria
família.
Um resultado como este é tão desconcertante
que poderia marcar, como sugeriu outro amigo meu, também casado, o colapso da
história cristã católica. Mas é claro que existem outros aspectos da
deterioração eclesial e social que nos levou a este ponto: o estrago da falsa
renovação na Igreja das últimas décadas; a incrivelmente estúpida política de
inculturação aplicada a uma cultura ocidental sem raízes invadida pelo
secularismo militante; a inexorável e progressiva erosão do matrimônio e da
família na sociedade, o ataque contra a Igreja, mais intenso desde seu interior
que do exterior, como denunciava o Papa Bento; o grande desvio de alguns
teólogos e leigos em matéria de anticoncepção; os espantosos escândalos sexuais;
os inumeráveis sacrilégios; a perca do espírito da liturgia; os cismas internos
"de fato" sobre uma série de
questões enfoques graves, sutilmente disfarçados sob uma aparência de unidade
"de iure" da Igreja; os
modelos de profunda dissonância espiritual e moral que pululam atualmente sob o
vergonhoso título de "católico". E nos surpreendemos de que a Igreja
esteja em um estado de debilidade e esteja desaparecendo?
Poderíamos inclusive rastrear os longos
precedentes temporais da Amoris Laetitia. Como tenho um espírito um tanto
quanto antiquado, vejo este documento como o mal fruto de certos
desenvolvimentos do segundo milênio na Igreja ocidental: a forma rigidamente
racionalista e dualista do tomismo promovida pelos jesuítas no século XVI e,
neste contexto, sua elaboração da compreensão casuística do pecado mortal no
século XVII. A arte da casuística foi aplicada a uma nova categoria de ciência
sacra chamada "teologia moral", na qual, me parece, a regra de
cálculo é sabiamente usada para estimar tecnicamente, caso por caso, a
culpabilidade mínima necessária para evitar a imputação de pecado mortal. Que
meta espiritual! Que visão espiritual! Hoje a casuística volta a levantar a sua
cabeça feia sob a nova forma de ética da situação e a Amoris Laetitia, francamente,
está cheia dela, embora tenha sido expressamente condenada por São João Paulo
II na encíclica Veritais Splendor.
5.
PEJORAÇÃO
Posso lhes exortar de alguma maneira que
possa ser de ajuda? São Basílio pronunciou uma grande homilia sobre o texto
"Mas tenha cuidado e guarda-te bem"
(Dt 4, 9). Antes de tudo devemos ocupar-nos de nossas disposições. Nos Padres
do deserto encontramos várias histórias onde um jovem monge persegue sua
salvação eterna mediante a heroica mansidão de sua obediência a um abade com
sérias imperfeições. E ao final obteve também o arrependimento e a salvação de
seu abade. Não devemos deixar-nos tentar por reações de hostilidade ao Papa
Francisco, pois corremos o risco de cair no jogo do diabo. Devemos honrar e
manter na caridade também a este profundamente imperfeito Santo Padre e rezar
por ele. Com Deus nada é impossível. Quem sabe, Deus tenha colocado Jorge Mario
Bergoglio nesta posição para encontrar um número suficiente de pessoas que
rezem eficazmente pela salvação de sua alma.
Tenho observado que os cardeais Sarah e
Pell permanecem em silêncio. Pode ser que seja sábio fazê-lo, pelo menos por
enquanto. Enquanto isso, vocês que têm responsabilidades no governo da Igreja
terão que dar disposições práticas no que concerne às questões controvertidas
da Amoris Laetitia. Antes de tudo, em nossas mentes não devemos ter alguma
dúvida sobre qual é e será o ensinamento real do Evangelho. Obviamente,
qualquer estratégia de pressão para um esclarecimento oficial da futura prática
deve ser tentada. Exorto em particular aos bispos para fazer isto. Alguns de
vocês podem encontrar-se em situações muito difíceis quanto a seus semelhantes,
quase exigindo as virtudes de um confessor da fé. Estão preparados para os
cilícios, metaforicamente falando, que podem receber? Claro que eles podem
eleger a ilusória segurança de um vazio convencional e da simpatia superficial,
uma grande tentação para eclesiásticos como também para homens de negócios. No aconselho.
Os tempos são críticos, talvez muito mais do que suspeitamos. Estamos sendo postos
à prova. "O Senhor está aqui. Ele te chama."
6. A
DISPOSIÇÃO EUCARÍSTICA APROPRIADA PARA OS DIVORCIADOS EM SEGUNDA UNIÃO
Recentemente um amigo me enviou por e-mail
alguns pontos sobre as disposições eucarísticas justas para os que estão em
"situações irregulares". Na minha resposta expressei o que pensava
sobre o que creio ser a conduta espiritual e sacramentalmente aconselhável para
um católico que se encontra na "situação irregular".
Há uma encantadora senhora que vem
habitualmente à Missa em nossa catedral e se senta atrás de todos. Tive uma
conversa com ela e soube que se encontra em uma destas "situações
irregulares", mas é muito diligente em vir à Missa, ainda que não
comungue. Não se revolta contra a Igreja, nem diz "É culpa da Igreja"
ou "Que injusta é a Igreja", sentimento ouvido de outros, aos quais
corrigi com amabilidade. Nestas circunstâncias o comportamento desta senhora é
admirável.
A melhor atitude que pode ter na oração
quem está nestas situações e ainda não chegou ao arrependimento requerido (e,
portanto, a confissão), mas não quer deixar de ver Deus, é apresentar-se diante
do Senhor na Missa em seu estado de privação e necessidade, e não sair correndo
para "arrebatar" a eucaristia, mas tentando abrir-se para a ação de
graças e a uma mudança das circunstâncias, se e quando for possível. Meu
pensamento sobre sua situação é a de que é melhor esperar honestamente, ainda
que dolorosamente, na tensão de sua situação diante de Deus, sem subterfúgios.
Creio que este é a melhor posição para o triunfo da graça.
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A comunhão é remédio para a alma que está livre de toda pecado, mas é condenação para aqueles que querem servir a dois senhores (I Cor 11, 27) |
A propósito do qual me vem à cabeça uma
frase do ator Richard Harris, um católico não-praticante encrenqueiro durante
muitos anos: "Eu me divorciei duas
vezes, mas prefiro morrer como um mal católico do que fazer com que a Igreja
mude para que se adapte a mim".
Há mais honestidade nisto do que... bom,
melhor não dizer.
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Fonte: Chiesa Espresso – Por Sandro
Magister (Tradução nossa)
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